terça-feira, março 24, 2020

Querida Grunholândia



Actualmente vive-se um estado de sítio em muitos sítios deste recôndito planeta, numa quarentena mais ou menos globalizada, onde o mais famoso hashtag do momento é – #fiqueemcasa.

Fique em Casa, Hashtag de ordem, senhor de si só, cheio de sapiência, imperativo no seu clamar… em oposto a isso ficam todos os que não ficam em casa – párias, e como bem sabemos as párias são indesejáveis, tão indesejáveis que ultimamente se tornaram uma espécie de importação inconsciente d’Os Intocáveis, (a última Casta das Castas da Índia)… tal como lá, estes intocáveis, (que por aqui se tornaram intocáveis por serem párias desobedientes), tornam-se, em consequência disso, o suprassumo da aversão alheia.

Parece que de repente já não importa o motivo da saída à rua… sai leva com o dedo apontado na cara, sem oportunidade de defesa, sem rebate, sem contestação, sem segundo ponto de vista… como se por momentos todos estes dedos, que não podem tocar, quisessem “tocar” a todo o custo neste indesejável grupo de intocáveis.

Sim a ameaça é real apesar de invisível ao olho humano… talvez por ser tão microscópica nos assuste em contrária proporção, e por isso mesmo, nos agigante o sentido de responsabilidade e de civismo…
… sejamos então conscientes e tenhamos a devida precaução, sim, tenhamos precaução a todos os níveis, inclusive, precaução na estupidez e na facilidade com que julgamos o próximo sem saber a sua história.

Julguemos sim, mas não apenas porque há covid-19, julguemos agora e depois, o que está, estava e continuará a estar errado; julguemos agora e depois, todas as pessoas que sem respeito tossem para o ar, ou que espirram como se competissem com os seus pequenos “gafanhotos” numa espécie de olimpíadas imaginárias de salto em comprimento… julguemos os/as que cospem e escarram para o chão, os/as que grunhem palavrões ofensivos a quem os não merece… os que mandam lixo para onde não devem… julguemos, mas julguemos apenas quem por preguiça ou maldade não faz uso da palavra civismo… sim, porque ser-se Grunho é fácil, e como bem sabemos, há muita gente preguiçosa por aí. Mas nem toda a criatura que anda na rua é grunho… assim como nem todas as pessoas podem ficar em casa.
Os profissionais de saúde estão nessa primeira linha, caso a meu ver para dizer aos mesmos, em modo hashtag - #ObrigadaPorNaoFicaremEmCasa…
…e eles não são os únicos, há depois deles muitos outros que até gostariam de estar em casa mas não podem, faz esse grupo parte de profissões a que a sociedade chama de menores, mas das quais todos nós e todas nós carecemos - como cuidadores, voluntários, auxiliares de limpeza (seja em Hospitais ou noutros locais), funcionários da recolha do lixo, etc… quase ninguém pensa nessas pessoas, são os visíveis invisíveis, e eventualmente miseráveis merecedores de sua miséria aos olhos de muita gente que se diz iluminada.

São pessoas de classes baixas… simples… e por isso mesmo, porque podem não ser pobres de espírito, mas são certamente pobres no bolso, efectivamente pobres, no mais triste e lamentável sentido da palavra pobreza, viajam de autocarro, de comboio, de metro, e muitas vezes, como nem dinheiro para os transportes públicos têm, vão a pé… o que como é óbvio não quer dizer, que só ande a pé quem não tem dinheiro… mas são estes os seus meios de transporte, e se o são, é normal que não se vejam as ruas, as paragens, as plataformas e outros demais locais, tão vazios quanto se desejaria, no entanto, há quem achando isso motivo de noticia a noticiar, vá logo a correr assuntar o assunto… caso para dizer… e você caro delator, ou cara delatora, porque não está em casa?!, e já agora, onde ficou a distância de segurança de que tanto falam aquando do apontar, ou do entrevistar, dos/as transeuntes?!


Sempre achei que para podermos apontar o dedo a alguém teríamos primeiro de merecer esse direito, e para o merecer teríamos de dar prova de tal através do exemplo, até porque caso contrário pergunto-me – que moral tem alguém em julgar alguém, quando a sua própria moral é duvidosa?!

Além dos casos já mencionados, há ainda aqueles cujo trabalho pode não ser tão crucial neste momento, mas que, não podem deixar de ir trabalhar, porque por mais medo que tenham do coronavírus, e por mais que desejassem ficar em casa, se ficarem são despedidos/as, e se não morrerem então do coronavírus, arriscam-se a morrer de fome e/ou a matar de fome os seus filhos e as suas filhas (caso os/as tenham), o que me leva a parafrasear um velho ditado popular - “SE CORRER O BICHO PEGA, SE FICAR O BICHO COME”.

Julgar é fácil, difícil é colocarmos-nos na pele do outro… e sim, temos todos/as o direito de não concordar uns com os outros, mas independentemente da concordância, ou da falta dela, todos/as nós nos devemos Respeitar, assim como – Averiguar, antes de Julgar.

Não bastasse tudo isto, há casos ainda mais dramáticos, os de todas as pessoas vulneráveis que simplesmente não têm casa, como é o caso dos sem-abrigo.
Talvez fosse o caso de criar a hashtag – Uma Casa Para Todos… sim, porque para se ficar em casa, primeiro, temos de ter uma casa.

Nem todas as pessoas que saem à rua saem pelos mesmos motivos… nem todos nós fazemos parte do grupo de pessoas que sai à rua por lazer, ou para apanhar banhos de sol.


A mim pessoalmente se me apanharem na rua é porque se tornou imperativo sair… como aliás quase sempre foi, pois não fossem as notícias desoladoras do coronavírus na TV, para mim seria praticamente um dia normal…
… é que eu, tal como muitos/as outros/as artistas, já vivíamos numa espécie de quarentena muito antes da quarentena nacional ser decretada… e eu disse – numa espécie de quarentena, falo no sentido figurado, pois se quiser ser literal, o correcto seria chamar-lhe reclusão… e sim, há mais grupos de pessoas que antes da quarentena também já viviam constantemente numa espécie de quarentena, não porque querem, mas porque a isso as suas condições físicas e/ou psicológicas os/as obrigam, como é o caso de pessoas com depressão profunda, mobilidade reduzida, doenças crónicas, ou outras.
Claro que são “quarentenas” diferentes e bastante distintas, é facto. A quarentena que se vive hoje prende-se com um esforço colectivo na Tentativa da Não Propagação deste maldito Vírus… já a minha “quarentena” pessoal de quase toda uma vida, prende-se com o facto de eu fazer parte de uma profissão que por norma é realizada em isolamento no meu próprio lar, (eis as vantagens, e as desvantagens, de se passar a vida no grupo dos chamados Recibos Verdes… ora empregados… ora desempregados… porque toda a gente precisa eventualmente, no sentido literal, destes polivalentes freelancers, aquilo de que nem toda a gente gosta - é de lhes pagar condignamente, ou de lhes assegurar estabilidade profissional, mas isso, dava outro texto), portanto prosseguindo… estava eu a dizer, que a minha “quarentena” pessoal de quase toda uma vida se prende com o facto de eu fazer parte de uma profissão que por norma é realizada em isolamento, com isso, com a constante falta de dinheiro, e talvez um pouco também, com a constante ausência de empatia pelas atitudes do ser humano em geral.

Caso para dizer – população em geral, bem-vinda ao isolamento, que este vos sirva para pensar na vida que levavam, e no que querem mudar daqui para a frente… ou simplesmente que vos sirva para se lembrarem daqueles amigos ou amigas que sempre viveram isolados/as, e aos quais vocês nunca ligaram grande coisa porque andavam demasiado ocupados/as a viver a vossa vidinha corrida... talvez agora, experienciando por algum momento essa solidão, entendam o quão foram negligentes no passado, e o quão importante é sentir alguém presente, verdadeiramente presente, mesmo sem a presença de um corpo físico.

Resumindo, não me identifico minimamente com a hashtag “#Fique em casa”, até porque se publica-se, fosse onde fosse, #Fiqueemcasa, estaria a publicar essencialmente para quem já conheço, e uma vez que quem conheço já está em casa, e quem não está, se não está, é porque não pode estar, publicar tal coisa seria só ridículo… assim sendo, a ter hashtag, que a minha hashtag seja – #EuEstouEmCasa…

…  ou #ObrigadaPorTambemEstarEmCasa, para quem tem casa... e pode estar lá.

Por fim mas não menos importante, a quem está lá fora a zelar pelo bem dos demais, fazendo do seu dia-a-dia uma luta onde arriscam a vida a todos os segundos, dando assim o melhor de si por uma humanidade que nem sempre é muito humana ou merecedora seja do que for, para todos eles e elas, as minhas hashtags são:
- #OBRIGADA  #VocesSaoOsHeroisEAsHeroinasDesteInicioDeNovoMilenio

São momentos difíceis, confirma-se, hoje falei com alguma seriedade, mas amanhã talvez me apeteça arremessar com algum humor-negro a este recém-nascido coronavírus, para ver se ele se desmancha e sucumbe, nem que seja apenas na minha mente e por breves momentos… porque às vezes rir é realmente o melhor remédio… rir até às lágrimas de felicidade, de medo, de tédio, de ódio, de loucura... rir, não como forma de escárnio, mas como forma de escape e superação… isso!!!!… ou então alieno-me a desenhar, sejam esses desenhos sobre tragédias, ou sobre pós de perlimpimpim, porque a dor de cada um é de cada um, e cada um tem à sua maneira uma forma particular e peculiar de lidar com ela, independentemente de essa maneira ser a mais certa ou a mais errada para os demais.

Até mais, até lá, com ou sem álcool etílico, e com ou sem papel higiénico, deem uso à água e ao sabão, que eu daqui fico a torcer para que continuem saudáveis de corpo e mente.


Já agora, se tiverem a sorte de ter um pequeno quintal, ou jardim, ou janela virada para a natureza, desfrutem deste início de Primavera, pois não há nada melhor e mais belo, do que, combater o cinzento destes dias de virulência, com a subtil fragilidade do despertar das flores.

Elisabete, a Borboleta Despenteada

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